AS PELADAS DO TEMPO DE CRIANÇA

                           Quem no tempo de criança, já não jogou uma rua contra a outra? Acredito que todo mundo já teve essa experiência, inclusive eu. Era um tempo romântico do nosso futebol, e também da nossa simplicidade e falta de maldade, pois tudo terminava bem, exceto algumas vezes onde os ânimos se exaltavam um pouco mais, mas era muito raro isso acontecer. Sendo assim, vou relatar um jogo do qual participei quando adolescente e que até hoje guardo em minha memória.

                           Era o ano de 1962, o Brasil acabara de sagrar-se campeão mundial no Chile. O país estava em festa. Todo garoto sonhava em ser um Pelé, um Garrincha, enfim, o futebol corria nas veias daquela molecada. E foi numa tarde do mês de setembro daquele ano, que o time da minha rua recebeu o convite de um time da rua de baixo, o qual aceitamos de imediato. O jogo foi marcado para o próximo sábado às 14:00hs.

                            Eu e meus amigos nos preparamos e fomos ao local combinado, ou seja, no campo do adversário. Quando chegamos, só havia mato. Literalmente. O trajeto para o campo era feito através de uma trilha que serpenteava entre os arbustos. Ao final dela, encontrávamos o famoso “Campinho da Bananeira”. Nunca descobrimos porque ele tinha recebido esse nome, afinal, não se avistava nenhuma bananeira por perto. É provável que ela já tivesse dado seus cachos e sido arrancada por algum desalmado.

                            O gramado era uma obra de arte. Como não havia dinheiro para um sistema de drenagem, a própria natureza se encarregou de resolver o problema com um declive de, pelo menos, 15 graus. Assim, a chuva logo escoava estrada abaixo, deixando a grama sequinha de novo. Grama esta que não nascia no habitat dos goleiros, como orienta os melhores manuais varzeanos. E, para completar, as linhas de fundo não tinham, necessariamente, o mesmo comprimento.

                           Alguém pode dizer que é exagero sentimental, mas os maiores duelos varzeanos foram disputados naquele trapézio. Sim, trapézio, porque retângulo não é para amadores, tampouco frescuras do tipo dois tempos de 45 minutos e a regra do impedimento. O trio de arbitragem também estava dispensado, pois os lances polêmicos eram solucionados na base do cavalheirismo. Ok, talvez eu tenha exagerado neste último ponto.

                           Naquela tarde, iria acontecer naquele campinho um verdadeiro clássico entre o “time da rua de baixo” contra o “time da rua de cima”. Geralmente estes jogos só eram encerrados quando o Sol nos abandonava para iluminar o outro lado do mundo. Em termos urbanos, a definição “rua de baixo” e “rua de cima” não era a mais correta. Fui integrante do esquadrão da rua de cima, mas a verdade é que as equipes eram formadas por garotos de vários lugares da cidade. A diferença estava num suposto desnível social entre os times, o que nos rendia um tipo diferente de bullying.

                          Segundo a turma da rua de cima, tínhamos obrigação de ganhar porque éramos bem nutridos, enquanto eles precisavam se contentar com broas que só eram partidas com ajuda de um martelinho e olha lá. Só que não cumpríamos a tal obrigação com tanta frequência. Vencíamos aqui e ali, mas não tínhamos a ginga de nossos rivais e o equilíbrio só era possível com aplicação tática ou algo parecido e muita vontade. Outra desigualdade estava nas alcunhas. Enquanto atendíamos por nomes reconhecíveis como José Carlos, Roberto e Fernando, nossos oponentes ostentavam apelidos maneiros como Casquinha, Lemão, Xandão, Japinha, Pezão, etc…

                          E havia também um tal de Dilão. Era um moleque de braços e pernas finas, uma espécie de Garrincha. Dono de um repertório inesgotável de dribles, era o tipo de peladeiro que não desperdiçava a chance de aplicar um chapéu no adversário, ainda que custasse um contra-ataque. Isso irritava, é claro, mas encantava na mesma medida. Num certo momento do jogo ele dominou uma bola perto da bandeirinha de escanteio imaginária e esperou por sua vítima. O nosso zagueiro voluntarioso, hoje um renomado advogado, partiu à caça do pequeno driblador e deu um bote seco. Porém, como num passe de mágica, bola e Dilão não estavam mais lá.

                          No embalo, só restou ao defensor saltar por cima do arbusto que fica ao lado da linha de fundo e desaparecer de vista. Uma nuvem de poeira amarela se ergueu em seguida. Depois de uns cinco minutos de gargalhadas dos dois times, o jogo seguiu. Em tempo: perdemos o jogo de 4×0.

                         Anos se passaram e quando nos encontramos, relembramos com saudade daquela época em que éramos felizes e não sabíamos. Muita coisa legal aconteceu naquele piso duro, mas essa é outra história. Quanto ao Campinho da Bananeira, nunca mais voltei lá. Não tive coragem.

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